Eu fui uma criança e uma adolescente bastante castigada… E aí?

Por Sônia Pessoa

Vou discutir a temática do castigo a partir dos seguintes eixos: a minha experiência de ter sido castigada, a vivência em família (com parente e filho sendo castigados), a minha experiência de professora com indisciplina em sala de aula, as minhas opiniões sobre aplicação de castigo, e algumas sugestões de textos sobre o tema. Vamos lá…

Não consigo contar nos dedos o número de castigos que recebi ao longo da vida. A maioria foi em casa mesmo. Meu pai, que amo de paixão e que é uma referência positiva em minha vida, era (está vivo mas já mudou bastante desde então) daqueles pais bravos, que acreditavam profundamente no castigo.

Eu era uma excelente aluna, daquelas que tiravam 100 pontos em quase todas as disciplinas. Ganhava medalhas bimestrais e faturava a medalha anual de melhor aluna. Detestava o rótulo de boa aluna, ‘CDF’ e coisas do gênero. Achava chato subir ao palco para receber medalhas, embora gostasse do reconhecimento. Adolescente, andava com a turma “da bagunça”, dava aulas particulares aos meus colegas que não conseguiam entender a matéria e tinha um comportamento ‘repreensível’ para o padrão de meninas da época (final dos anos 1970 e 1980).

Apesar de ser boa aluna, detestava e tinha dificuldades em matemática e física e consegui sobreviver e tirar boas notas nessas disciplinas  graças à minha irmã Rita, que se sentava comigo depois do trabalho para longas aulas particulares regadas a choro, muito choro.

Era ‘agitada’, gostava de esportes e atividades consideradas masculinas na época  (futebol, subir em árvore, lutar karatê, escalar as grades do colégio, subir em muros, entre outras), era muito ‘atrevida’ e exalava rebeldia. Em sala de aula, não parava quieta, falava sem parar e me insurgia diante de situações que considerava injustas. Fui diagnosticada por um neurologista: Disritmia (algo que não existe mais), alterações cerebrais, no meu caso sem convulsão. Receitaram gardenal; devo ter tomado durante uns cinco anos; talvez entre 8 e 13 anos. Hoje eu digo que aquilo era ‘sossega leão’. O paciente fica ‘mais calmo’, ‘mais lerdo’ e ‘mais sonolento’.

Duas dessas situações me renderam episódios que marcam a minha história de vida na escola pública onde fiz o ensino fundamental. Amava educação física. Em um dia de chuva, a professora preferiu dar uma aula teórica e nos manteve em sala. Ao final, pediu que escrevêssemos a nossa avaliação sobre a aula. Peguei um papel e escrevi em letras garrafais: MERDA, MERDA, MERDA (bem assim, três vezes).

A professora ficou constrangida ao recolher a folha, não comentou nada e registrou o fato na diretoria da escola. A diretora, sábia e experiente como ela só, me chamou para uma longa e importante conversa sobre respeito ao professor, tolerância a propostas diferentes do que estamos acostumados, comportamento, respeito às regras… Isso devia ser 1979… Não houve ameaças, julgamento, represálias nem castigo dessa vez… O fato foi comunicado aos meus pais. Lembro-me, como se fosse hoje… eu e minha mãe, que é professora, deitadas na cama dela, conversando sobre o ocorrido e ela me fazendo refletir… Nunca mais me envolvi em episódio semelhante com professor.

Uns dois anos após esse episódio me envolvi em outro, vergonhoso… dois colegas brigavam em sala, eu, toda intrometida, tomei o lado do ‘+ fraco’ e enfrentei o maior. Quase saímos nos tapas. Fomos os três para a secretaria. De novo a diretora nos levou a pensar sobre tudo aquilo. Superadas as divergências, voltamos a ser amigos e passamos uma adolescência feliz juntos. Detalhe: o ‘+ forte’, contra quem me insurgi era filho da diretora. E anos mais tarde, eu a convidei para ser minha madrinha de crisma. Não queria um parente só para cumprir tabela. Queria uma madrinha que admirasse.

Esses são dois episódios nos quais não houve castigo… Da infância à adolescência, entrava e saía de castigos com uma facilidade absurda. Certa vez fiquei de castigo atrás de um mural verde no fundo da sala de aula… de cara para a parede… E a cada castigo, em casa ou na escola, tinha certeza de que tudo aquilo era uma bobagem. E tinha certeza que repetiria o comportamento… tinha certeza que era preciso repeti-lo para chamar a atenção de que o castigo poderia me parar por um tempo, mas não poderia ‘me curar’ daquele comportamento, como acreditavam.

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Há 18 anos vejo um parente passar por castigos diversos em salas de aula. Diagnosticado com TDA tem dificuldade de concentração e é um desafio para professores nem sempre preparados, nem sempre interessados, nem sempre dispostos…

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Meu filho ficou de castigo duas vezes na mesma escola, apesar das professoras dizerem que não se trata de castigo e que a intenção não foi essa. Até acredito… Uma vez ‘atrapalhou’ a aula e ficou vendo os colegas brincarem no recreio enquanto ficava de mãos dadas com a monitora. Não podia brincar. Na outra vez, não fez uma atividade em sala e ficou sem aula de educação física.

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Como professora universitária por dez anos me lembro de dois casos que me chamaram mais a atenção… Um dos melhores alunos que já tive, e hoje é um excelente repórter, conversava sem parar na sala. Em tom de brincadeira, eu o pegava pela mão e o levava para perto de mim. Ele aceitava e a gente conseguia ter aula… espero que ele não ache que tenha sido um castigo… e se tiver achado, que me perdoe um dia.

Um aluno, também na faculdade, queria bater em uma aluna grávida. Chegou a levantar a carteira para arremessar… enfrentei o aluno e chamei a segurança e a coordenadora. Disse que não daria aula naquele ambiente e que o caso deveria ser levado ao colegiado, como foi, avaliado por um grupo de professores, e as penalidades, previstas no regime da instituição, aplicadas. Quando voltou a frequentar a aula, recebi o aluno naturalmente, embora tivesse medo dele, mas houve respeito mútuo e ele terminou o curso sem novas ocorrências.

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Alguns esclarecimentos sobre a minha posição contrária à prática do castigo e algumas questões para pensarmos:

* Sou contrária ao castigo por ideologia, filosofia de vida e de trabalho e pelas minhas vivências…

* Ser contrária ao castigo não significa ser contrária aos limites, às regras, aos combinados e às sanções definidas claramente pela família e pela escola… não significa ser permissivo…

* Surpreende-me que a gente esteja no século XXI trabalhando com a concepção de castigo utilizada há mais de dois séculos…

* Sou contrária à utilização de castigos definidos e praticados pelo professor sem que essa prática esteja prevista, de maneira detalhada, no estatuto da escola, e que os pais sejam informados sobre ela abertamente…

* Sou contrária à substituição de uma atividade letiva como punição (não participar ou não fazer determinada aula porque não fez atividade em outra)…

* Entendo e tenho conhecimento de casos absurdos de indisciplina que acontecem, com desrespeito e até ameaças a professores. Esses casos também devem ter suas sanções previstas em regimento e devem ser aplicadas em graus de conversa com o próprio professor, com coordenação, diretoria, família, advertência, enfim… como se sabe que é possível fazer…

* Sou contrária à aplicação de um castigo sem o professor tentar se quer entender o que se passa com o aluno.

* O senso comum repete à exaustão: há muita criança sem limite, castigo nelas… reflete-se pouco; aplica-se muito…

* O castigo resolve um problema imediato por coação e não promove discussão e reflexão sobre responsabilidades e consequências.

* Um breve levantamento em meu perfil pessoal no facebook mostrou que algumas escolas praticam a suspensão do recreio para quem não fez a lição de casa, a salinha de espera para quem chegou atrasado, o quadrado vermelho na sala para a criança que não cumpriu determinada regra, o rosto virado para a parede para quem fez gracinha e por aí vai… qual o limite do castigo? Está previsto no regimento da escola? E o professor que ultrapassar esse limite? Como medir o bom senso? A questão é bem mais ampla e complexa do que podemos pensar…

* Como professora entendo que a autoridade do professor em sala é fundamental. E tendo a achar também que estamos diante de uma reconfiguração dessa autoridade que não é mais imposta e sim conquistada. Assim como o respeito. Se a sociedade mudou, é mais um desafio para todos nós, professores.

* Se professor e estudante iniciam um relacionamento de enfrentamento, o melhor que se tem a fazer é buscar ajuda da coordenação e do psicólogo escolar (o problema é que muitas escolas economizam nesse quesito mesmo cobrando mensalidades que podem variar entre 600 e dois mil reais).

* Percebo que algumas escolas não utilizam o nome de castigo mas a prática se configura como tal… a meu ver, mesmo que não haja a intenção do professor de castigar, se a punição é aplicada, o castigo está configurado.

* A repetição e a gradação do castigo contribuem consideravelmente, a meu ver, para a repetição do erro, da indisciplina e da baixa autoestima do estudante.

* Discutimos hoje o castigo a exemplo do que foi preciso fazer com a palmada… é preciso avançar muito…

* Procurei no google e não encontrei nada sobre os benefícios do castigo (se alguém encontrar e quiser me enviar)…

Relaciono abaixo alguns artigos que podem nos auxiliar na compreensão do combate à indisciplina, na compreensão do que se passa com o aluno

Como tratar a indisciplina na educação infantil

20 passos para combater a indisciplina

Essa matéria mostra que as atitudes de muitos professores são desastrosas ao lidar com a indisciplina

Dificuldades de aprendizagem na matemática, indisciplina e castigo

O psicólogo escolar pode ajudar o educador a refletir sobre a própria infância para entender a infância do outro. 

Reflexão sobre o castigo proposta pela Revista Nova Escola 

Uma professora que foi castigada na infância, que viu a mãe castigando os alunos e que enfrentou esse tipo de problema em sala de aula decidiu estudar o tema. Clique aqui para fazer download do artigo. T1453336855746

Castigos e punições escolares, uma perspectiva histórica e a situação no Paraná

A visão culposa do erro, na prática escolar, tem conduzido ao uso permanente do castigo como forma de correção e de direção da aprendizagem, tomando a avaliação como suporte da decisão. Todavia, uma visão sadia do erro possibilita sua utilização de forma construtiva.