A morte do Pedro: Chacalaca!

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A gente estava curtindo preguiça na casa da Vovó… uma das últimas fotos juntos

Estávamos dormindo em duas camas de solteiro, uma bem grudadinha na outra, na casa da minha mãe em Paracatu, no interior de Minas. A gente acordou meio preguiçoso no primeiro dia de 2016. Era um ano de expectativas. Pedro e eu comentamos várias vezes que seria o ano do décimo aniversário. Ainda faltavam seis meses, mas como ele adorava aniversários e eu achava o máximo ter um filho que faria 10 anos, a gente sempre falava sobre isso. Os olhos esverdeados se abriam com aquela alegria que muitos conhecem – Chacalaca!, dizia ele, usando uma expressão que criara há alguns anos e que significa qualquer coisa exclamativa, de alegria, de comemoração, de felicidade, de surpresa, do inesperado. Na minha infância também tinha mania de inventar palavras e reconhecia no Pe que essas invencionices passam de mãe para filho mais para orgulho das mães do que por herança genética. Mal sabia eu que Chacalaca! estamparia uma das coroas de flores poucos dias depois no velório dele.

Independente que era, Pe se levantou comentando estar com dor de barriga. Foi ao banheiro sozinho, o ajudei a se limpar, e sugeri que voltasse para a cama. Estava curtindo tanto as férias que deitava tarde, acordava tarde para os padrões dele, saía o tempo todo (bastava aparecer um convite), curtia as primas queridas e de quem passava a maior parte do ano longe por morarem em cidades distantes.

– Você tem razão, mamãe, vou descansar mais um pouco.

Ainda tive tempo de tomar um café e comentar com a minha mãe que, graças a Deus, não deveria ser nada relacionado à hidrocefalia, afinal, ele teve mesmo uma pequena diarréia provavelmente em consequência da quantidade absurda que havia comido de chocolate no ano novo até mesmo na hora de dormir. E, contrariando o meu comportamento usual de quem não permitia tais excessos, acabei deixando o desejo correr solto, o que esvaziou a caixa de bombons da vovó na mesma noite.

Depois de um soninho gostoso, Pe se levantou mais uma vez e me disse que estava meio tonto. Fiz pequenos e rápidos testes com os olhos, e perguntas para testar a consciência e tentar identificar sinais de pressão intracraniana. Otimista e inocente que sou, me gabava há 9 anos de saber identificar quando Pe teria convulsões (todas as vezes em que passou mal estava comigo e meu marido), sabia quando sair correndo para o hospital, sabia quando era doença de criança… E, como pode, nunca havia me enganado. Reza a sabedoria popular que para tudo tem uma primeira vez. Tola, eu…

Dessa vez foi tudo diferente. Não houve roteiro, não houve aprendizado, não houve providência no campo do previsível. Suando frio, se levantou mais uma vez, me disse que achava que ia passar mal. Deitou-se novamente, gritei para minha mãe acionar o meu cunhado para o levarmos ao hospital. Devia ser uma virose muito forte. O suor frio, em segundos, aumentou, tentou me mostrar que agora sim a cabeça doía e pronto. Apagou. O abracei, pedi que ficasse, repeti mil vezes que o amava (quem sabe a força das mães poderia mantê-lo na terra, quem sabe meu amor por ele poderia salvá-lo ou me salvar? Algumas mães acham que podem tudo!).

O desmaio foi fatal, como se o tirasse de órbita. E o tirou. Não havia me dado conta mas a morte dele foi naquele momento, na casa da minha mãe. Minha irmã e meu cunhado chegaram rapidamente e corremos para o hospital bem perto dali. Como costumam dizer, fizeram o que puderam. Os médicos, os enfermeiros, minha cunhada enfermeira, meu irmão médico à distância. Ele foi reanimado, trazido de volta… apenas nos aparelhos. Mas ninguém me dizia claramente. E desta vez, ao contrário de todas as outras, eu não tinha coragem de perguntar. Evitava pensar em todas as indagações que a minha mania de jornalista me trazia. Fugia das perguntas como o diabo foge da cruz e por mais que elas insistem em pegar dava um jeitinho de escapar. Tentava escapar de mim mesmo.

Pela porta entreaberta do hospital reparei que o cardiologista colocava várias vezes a lanterna nos olhos do Pe. Teimava em procurar um sinal, um movimento qualquer, uma breve reação. Nada… Fiquei sabendo dias depois que esse mesmo médico perdeu um filho formado em Medicina no dia primeiro de janeiro de um ano qualquer. E, desde então, parece que costuma trabalhar neste dia, talvez para evitar a dor de ficar em casa ou para honrar o filho ajudando outras famílias que não têm opção outra a não ser estar de cara com a morte sem aviso prévio.

Um pânico tomava contava conta de mim e eu afastava qualquer pensamento sobre a morte. Nunca fui de pensar Nela, não seria agora que tomaria a minha mente. Me concentrava nas possibilidades, fazia cálculos, pensava nas 7 ou 8 cirurgias neurológicas (já fiquei confusa sobre o número) às quais foi submetido entre 4 meses e 1 ano de idade. Buscava os profissionais que poderiam nos ajudar. Me consolava porque logo logo estaríamos na UTI aérea que nos levaria a Belo Horizonte e o médico que o acompanha desde bebê ‘nos salvaria’ como ocorreu tantas vezes. Pensava que um dia Pedro daria gargalhadas, como gostava de fazer, da nossa viagem, só os dois, de carro, por 500 km, para passarmos o natal em Paracatu e da volta de avião, em uma UTI, o desespero, e o final feliz. Viajar e passear eram com ele mesmo! Histórias de viagem, então, as repetia à exaustão para os amigos que vinham confirmar comigo desconfiando da imaginação do menino: – Mas ele foi mesmo à Alemanha? – Soninha, quando morou em Paris o Pedro comeu mesmo neve? – É verdade que na Espanha ele andou de trem?

Outro pânico: como conseguir falar com o meu marido e pai do Pedro, que estava com o irmão e o outro filho em um local sem contato telefônico? Podem imaginar que mobilizei amigos, deixei todos de prontidão, ligamos mil vezes, enviamos quantas mensagens os dedos trêmulos conseguiram digitar. Temia demorar demais a encontrá-lo e temia mais ainda a reação ao saber de tudo de uma só vez.

As horas caminhando em frente ao hospital de Paracatu, o vôo para a capital, o médico gentil de sempre nos esperando em BH para tomar todas as providências e até o choque de realidade que a plantonista da UTI me deu vinham amortizando a queda: – O seu filho falava? – Andava? – Corria? – Estudava em escola ‘normal’? (sic) – Acompanhava a turma? – Compreendia o que se passava ao seu redor? – Chutava bola? – Escrevia? – Lia (até em francês, respondo entre humilde, impaciente, incrédula e orgulhosa) – Ele acordou como acorda todos os dias? – Qual foi a última vez que a senhora viu o seu filho se movimentando, falando, qualquer coisa que seja? – Pois é isso que nos preocupa…

Um corte frio… a cabeça gira, estou sozinha no guichê da UTI… as perguntas romperam aquele estado estranho, indefinido, suspenso… passa rapidamente na minha cabeça a cena anterior. O enfermeiro da UTI Aérea me disse para conversar com a médica porque havia uma peculiaridade na internação… E volta a cena anterior, antes de embarcarmos: o médico da UTI Aérea havia me apresentado a expressão “midríase unilateral não-reativa”. Não fazia ideia do que se tratava mas perguntei se significa coma. – Exatamente.

Nos três dias que se seguiram vivemos o que alguém chamou de velório antecipado: a morte encefálica… falaremos sobre isso em outra oportunidade. Não, não se preocupem, esse blog não será transformado em um blog sobre morte e luto. Há quem faça isso muito bem, como o projeto Vamos falar sobre o luto. Por aqui vou me permitir falar sobre o Pedro – e talvez para isso seja necessário narrar um pouco do que vivi nestes dias…

Para quem não acompanhou no meu perfil pessoal no Facebook repito duas mensagens que põem um pouco de luz no meu pensamento e na minha existência com o Pe.

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Estrela que é Pedro pegou carona na cauda de um cometa amigo para fazer o que mais ama na vida: passear, viajar e conhecer outras pessoas em outras galáxias. Viverá na Terra em outras crianças para quem doamos os órgãos e em nós, para sempre, como nosso anjo da guarda. Por vezes falta-nos ar mas sobram amor, doçura e ensinamentos. Pedro é luz, cor e vida. Agradecemos a força de todos ❤ ❤ ❤

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Que a ternura e a força desse olhar nos inspirem a seguir com resiliência, saúde, paz, sabedoria e alegria de viver, tudo o que o Pedro sabia fazer como ninguém. (Tenham certeza que li e me emocionei com todas as mensagens. Cada uma é importante a seu modo. Agradeço também as celebrações de diversas crenças que estão sendo dedicadas ao Pedro. Elas aquecem nosso coração e nos garantem energia para um momento só nosso, tão necessário agora. E não podemos nos esquecer de agradecer as dezenas de abraços carinhosos no encontro de despedida do Pe)