Por que precisamos nos mover mesmo que sem direção… Tudo bem ser diferente de cara nova

Caros amigos,

Começo com liberdade chamando os leitores de amigos porque durante anos os meus textos em Tudo Bem Ser Diferente me apresentaram pessoas diversas com modos de viver que me despertaram para mundos antes inexplorados por mim. O nascimento, a vida e a morte do meu filho Pedro sacudiram com tanto impacto a minha vida que, muitas vezes, me pergunto quem sou e onde estou depois de tudo isso…

Muitos destes leitores me impulsionaram com companhia virtual, conselhos, chacoalhadas, me tiraram de um lugar de vida tranquila na qual quase tudo dá certo quase sempre… os deixei sem resposta por quase dois anos simplesmente por não dar conta de pensar no dia a dia de um blogue sobre pessoas com deficiência.

Na verdade, minha vida virou de ponta a cabeça. Foi mais ou menos assim: passei no concurso público dos meus sonhos, Pedro morreu, meu ex-marido e eu nos divorciamos, me mudei de casa, me relancei em sala de aula, nada do que havia na vida cotidiana ficou no lugar… muitas vezes olhava para mim e não me reconhecia… não havia filho, não havia marido, não havia família nuclear, a grande família estava a quilômetros de distância, não havia a casa que eu acabara de reformar, não havia rotina, não havia uma vida construída nos últimos 20 anos e maravilhosamente intensificada com a presença do Pedro nos últimos 10 anos.

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Estive envolvida em momentos de extrema concentração que me permitissem fazer coisas muito simples na vida de qualquer pessoa como me levantar todos os dias, vestir a roupa, escovar os dentes, me arrumar, ir trabalhar, dar aulas, escrever… Cada uma me exigia tamanho esforço que eu me vi estimulada a fotografar cada momento em que realizava a mais óbvia das atividades cotidianas. Ficava tão cansada após cada aula que precisava dormir uma tarde inteira. Irritava-me com qualquer coisa que não saía como o desejado.

Sentia-me esgotada, conheci a solidão no que eu considero a mais profunda e cruel de suas experimentações. A solidão cercada de amigos que querem ajudar e efetivamente ajudam, mas que depende exclusivamente do seu desejo mais puro de interrompê-la sem fórmulas prontas, efêmeras e pouco eficazes.

Viver com Pedro foi ser apresentada a um mundo de incertezas tão avassalador que as palavras me escapam e as lágrimas despencam só de me lembrar enquanto escrevo. Foi entender que o amor é mesmo clichê; move o mundo em muitas direções, é capaz de nos lançar em movimentos ousados e arriscados, de promover disputas intermináveis e provocar grandes mudanças, sendo a primeira delas, aquelas guardadas no nosso cantinho mais íntimo, bem dentro de nós.

Como acredito que as mudanças internas, se desconectadas de nossas ações externas, têm pouca valia, tento me exercitar para aproveitar toda essa energia do amor, que nunca acaba, só aumenta, em direção aos mundos em que acredito, nos quais me inspiro e para os quais gostaria de deixar contribuições… modestas, pequenas, breves, cócegas apenas, diante da nossa complexidade, do nosso individualismo, da nossa pequenez, ainda humanas…

E por que retomar o Tudo Bem Ser Diferente? Por que hoje dou conta de pensar sobre pessoas com deficiência de um outro lugar. Hoje penso como professora, que teve essa experiência intensa com o filho, que fez doutorado sanduíche em Paris onde conheceu pessoas incríveis que me estimularam a assumir essa perspectiva de pesquisa na qual a experiência faz parte do próprio trabalho com orgulho e valorização. Penso como uma pesquisadora que quer formar pesquisadores sobre a deficiência, que quer formar pesquisadores com deficiência, que quer ver a universidade cheia de pessoas com deficiência ocupando vagas de estudantes, cargos técnicos e de docência. Penso como uma das coordenadoras do Afetos: Grupo de Pesquisa em Comunicação, Acessibilidade e Vulnerabilidades.

E por que Carlos Jota Guedes para assumir o blogue? Simplesmente porque eu gosto de verdade de pessoas diferentes de mim. Acho-as um desafio inesgotável do ponto de vista das relações humanas e penso que nos completamos em nossas inquietações. Nos conhecemos virtualmente há alguns anos, caminhamos ora no digital ora no presencial em uma grande linha de pensamento que comunga de boas energias e de reflexões que podem mover o mundo para pessoas com deficiência em direções mais hospitaleiras. Carlos é um estudioso, acumula informações, pesquisa e ação militante importante sobre as pessoas com deficiência. Ministra aulas e cursos em organizações governamentais e não governamentais e transita com desenvoltura entre pessoas com e sem deficiência. Durante muito tempo foi colunista deste blogue escrevendo a corajosa coluna Papo de Pai. E mais simplesmente ainda porque a minha intuição costuma funcionar… e me lembro muito pouco dos meus sonhos… acordei um dia, pensei no blogue, pensei no Carlos, no João, filho dele, que tem deficiência… estavam estabelecidas as conexões… tinha certeza de que ele pediria uns dias para pensar e aceitaria… foi assim… e ainda simplesmente porque acho lindo o movimento do Carlos que, nos últimos dez anos, tem se dedicado pessoalmente aos cuidados com o filho…

Tudo Bem Ser Diferente foi como um filho para mim… os meus projetos mais afetuosos são sempre filhotes, alguns mais próximos, que exigem mais carinho e atenção. Outros mais autônomos. Passei a vida ouvindo os meus pais dizerem que “a gente cria filhos para o mundo”. Sou grata aos meus pais por terem investido tanto na educação dos filhos e em um modo bem bacana de ver o mundo e de se mover para ajudar as pessoas mesmo quando a gente mesmo tem algumas dificuldades para sair do lugar. No caso do Pedro, criei um filho para o mundo e também para dimensões mais elevadas… Está na hora de Tudo Bem Ser Diferente ganhar a sua liberdade e sair da barra da minha saia.

Que a gente consiga espalhar um pouco de sentido em tudo isso que nos movimenta para que as pessoas com deficiência sejam pessoas, exercendo seus direitos e suas vidas.

Obrigada a todos pela companhia! E obrigada a Pedro, sempre, sempre…

<3,

Sônia (e Pedro, sempre junto, sempre presente, sempre me movendo)