Se desejo e o ponto do doce, Papo de Pai por Carlos Wagner Jota Guedes

Marta-1-17Existe uma expressão popular que, entre outras, me acompanha na condução do meu horizonte ético: “não perder o ponto do doce”. Essa expressão é comumente utilizada para alertar alguém ou a si mesmo sobre o perigo de deixar a vida (aqui no caso o doce) desandar. Para não desandar, muita vigilância é necessária. Por vezes, essa “muita vigilância” acaba nos transformando em pessoas amargas, que agem estritamente dentro do politicamente correto, etc. Outras vezes a aquisição desse valor é motivo de sofrimento, pois pode o indivíduo não conseguir sequer tocá-lo. Já transitei, e por vezes ainda transito entre um e outro. Qual de nós não perde esse ponto várias vezes ao longo da vida? A expressão perder o ponto do doce não é uma área cinzenta, em que podemos transitar dentro, é um ponto, em que se encontra todo o sublime do doce.

Os leitores que vem acompanhando esta coluna sabem que o João passou por uma grande cirurgia ortopédica em Julho. Nesta cirurgia foram feitos os alongamentos de tendões do quadril, dos joelhos e dos pés. Entre outras coisas o objetivo desta cirurgia era permitir ao João uma adequação postural e um ganho real de mobilidade através do cotidiano da fisioterapia. O pós-operatório é do ponto de vista da cirurgia simples, em menos de um mês o João já não usava polainas 24h (que fazem o papel do gesso, mantendo as pernas esticadas) e os pontos já tinham sido retirados. Porém, uma nova estrutura mental do corpo precisa ser criada após cirurgia. Por exemplo, até a cirurgia, o João ao ficar em pé cruzava as pernas. Elas ficavam como tesouras. A representação mental do corpo que o João tinha de seu corpo, antes da cirurgia, era de pernas cruzadas como tesouras. Todo o processo de reconstrução mental do corpo após a cirurgia é para que a representação que passe a existir seja a das pernas, não mais como tesouras, mas como palitos uma ao lado da outra. Essa reconstrução das representações do corpo abrem novas conexões neuronais e assim as teorias da plasticidade cerebral podem encontrar seu caminho de refutação.

Nestes quase 6 anos de vida uma coisa que esteve presente na rotina do João foram as práticas de fisioterapia. Elas não acontecem apenas nos consultórios, elas acontecem, sobretudo, em casa, com exercícios, brincadeiras, equipamentos e adequação dos espaços. Como já disse em outros momentos, hoje vamos apenas duas vezes por semana ao consultório, os demais dias sou eu, minha companheira e ele. E em casa, tudo acontece ao mesmo tempo, agora. Simultâneo ao traçado das letras do nome no para casa, treinamos o controle de tronco e cabeça. Na brincadeira de futebol, fortalecemos as pernas e a postura do bumbum coordenado com o posicionamento do peito. Ao fazer as refeições agimos sobre o controle da cabeça e na função levar colher à boca. Por vezes é só o exercício como andar no andador. Tem dias em que isso ocorre perfeitamente, azeitado com o melhor azeite, mas tem dias em que nada disso é tranquilo. Tem dias que são difíceis, que como qualquer outra criança, o João enrola, o João perde a paciência, o João chora desesperadamente. É neste contexto que a ideia do ponto do doce volta.

Como trabalhar com estes elementos com uma criança que está sendo educada desde cedo a debater, argumentar o porquê das coisas? Ironia dos valores que semeamos em nossos filhos é que o primeiro lugar a praticá-los é na nossa própria casa.

Conversando muito, lendo outro tanto, pensando um bocado, tenho construído que o ponto do doce é variável de gosto. Que ele é ponto, não há dúvida, mas que este ponto pode ser transitório ao gosto daqueles que convivem juntos e ao momento em que essa convivência ocorre. Assim, se desejo que meu filho seja capaz de reconhecer como iguais outras pessoas em suas diferenças, esse desejo deve ser reconhecido na minha relação com ele. Se desejo que meu filho seja capaz de se indignar com as injustiças e agir com a finalidade de sanar cada uma delas, devo ser atento para todas as vezes que ele me reconhece como injusto. Se desejo que ele seja capaz de reconhecer o dialogo como instrumento de respeito ao próximo, devo ser atento a todas as vezes que meu filho diz que meu teatro é um monólogo. Se desejo que meu filho seja uma pessoa que gosta do saber, devo estar atento às vezes que ele me chama a atenção para o meu não uso do saber. Se desejo que meu filho ande com as próprias pernas, preciso ficar atento toda vez que ele me lembra de que é necessário descansar. Enfim, o ponto do doce é relação, é cuidado com o outro, mesmo quando os desejos são diferentes.

*Carlos Wagner é graduado em Ciências Sociais e mestre em Sociologia. É entre outras coisas pai do João. Assina a Coluna Papo de Pai, publicada toda quarta-feira em http://www.tudobemserdiferente.com

** As opiniões aqui publicadas são de responsabilidade do colunista.